quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Ode a um taxista

O medo da morte é algo mais ou menos presente em cada um de nós. Mas manifesta-se, particularmente, em situações de maior perigo ou, quanto mais não seja, em circunstâncias nas quais desconfiamos de quem guia os nossos destinos nos minutos vindouros.

Ao bater o pé direito no solo albicastrense, cedo me interpelou um sujeito na casa dos 40, de cabelo enrodilhado e ar saloio, questionando-me se era eu o garoto que haveria de ir para uma das aldeolas da zona. Certo, sou eu, disse.

Levou-me até ao carro e – mal sabia eu – à experiência mais alternadeira e bizarra dos últimos meses. Garantiu-me que eu não quereria ver o estado do porta-bagagens daquele Mercedes, por isso abriu-me a porta que dava acesso ao banco traseiro da viatura e convidou-me a ali colocar as minhas preciosas e imaculadas bagagens. Se o banco estava naquele estado, nem quero imaginar a pocilga em que deve andar a bagageira do carro: cartas abertas e meio rasgadas, folhetos informativos de excursões à Galiza e duas ou três dezenas de bolachas meio mordiscadas, espalhadas de uma ponta à outra. Naquele momento, colocar as malas no chão do carro pareceu-me mais higiénico, por isso assim fiz.

Avancei até ao lugar do pendura para dar de caras com outras duas bolachas mordiscadas no meu assento. Pensando que o meu motorista tiraria aquela bodega do assento, aguardei. Em vão. Com uma certa vergonha alheia, nem sequer tive coragem de arrancar de lá as malditas bolachas. Sentei-me sem esboçar uma reacção, pensando apenas no momento em que me levantaria do carro com dois montes de massa agarrados ao sobretudo. Ao longo da viagem, porém, esqueci as bolachas. A atenção recaiu sobre o cheiro a vinho que empestava o ambiente e que, por uma qualquer razão, me trazia inquietude ao espírito.

A partir daí, nem uma palavra foi mais trocada entre os dois viajantes circunstanciais. Nada. O único som que se ouviu durante meia viagem foi o sinal indicador de que o condutor não levava cinto de segurança colocado. Deve ser uma mania qualquer de taxistas saloios. Só quando o nevoeiro começou a apertar no cimo da serra é que o sujeito, de volante na mão, achou que talvez não fosse grande ideia arriscar ser disparado pelo vidro dianteiro e ir esfregar a focinheira no rail mais próximo. Por isso apertou o cinto.

As duas mãos do amigo pareceram bailarinas. Não por serem graciosas e muito menos por desenharem no ar movimentos de alguma inspiração artística. Nada disso. A mão direita passeava entre o volante e a manete das mudanças, não sem antes ser roída, ocasionalmente, por aqueles dentes meio acastanhados. Mas era a manápula esquerda que tinha a seu cargo as tarefas mais nobres. Primeiro, um esfreganço naquele cabelo empoeirado e pastoso. Depois, o indicador espetado desaparecia numa narina – não sei bem se era para retirar algum muco seco ou se para coçar alguma comichão repentina na massa encefálica. E, como se não bastasse, também os dedos daquela mão precisavam de um trabalho de manicura patrocinado pelos dentes da criatura.

A meio da viagem, a minha vingançazinha por aquele espectáculo deprimente. Apesar do medo constante de saltar estrada fora em direcção a uma encosta da montanha, a caminho de uma morte dolorosa, o ligar inesperado do rádio trouxe ao ar uma canção sobejamente conhecida. Ele, aparentemente, não a conhecia. Aliás, o rádio foi ligado por um qualquer motivo inexplicável e misterioso, uma vez que canções ou estática pareciam nele surtir o mesmo efeito: indiferença. Murmurei confiantemente a melodia da canção, com algum receio de que aqueles dedos imundos pudessem ameaçar-me por estar a dar cabo do ambiente daquele veículo inóspito. Nada aconteceu. Felizmente.

Cheguei bem e estou a escrever isto à lareira. Mas tive algum pânico de passar o Natal debaixo de um cepo no meio da serra de Alvelos.

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