quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dia zero


Sentado a uma secretária que foi minha mas deixará de o ser em breve, penso em todas as pessoas que perdem o emprego diariamente. Sem pena ou comiseração. Apenas pensamento genuíno e com a menor emoção possível.

“Foi embora, já não trabalha cá”. O momento em que se fecha a porta pela última vez é bem capaz de ser uma tremideira para um espírito mais sensível. Não quero ser dramático com o meu caso. A experiência é sempre boa quando sabemos o que fazer com ela. Por isso sei que, daqui a alguns minutos, quando bater com aquela porta e puser o primeiro pé na rua, não é a angústia ou a dificuldade que me espera. É a oportunidade. A sério.

Odeio aquele discurso macambúzio da crise e das dificuldades. Mas também odeio os optimismos extremos que nos garantem que os momentos menos fáceis são os mais profícuos. Para mim não vai ser mais fácil nem mais difícil. Vai ser diferente. Para melhor, acredito.

Amanhã é o dia um de uma nova vida. Uma vida em que a investigação vai ser o centro da minha existência, em que vou perceber cada vez melhor que é o que quero fazer para o resto dos meus dias. Uma vida em que o lazer vai ter, inevitavelmente, uma presença maior nos meus dias. Uma vida em que as mudanças podem não ser meramente profissionais.

Mas hoje ainda é o dia zero. É aproveitar e reflectir sobre o passado e o futuro. Planear, na medida do possível, e ir vivendo. Com quem estiver por perto. Com quem quiser estar. Com quem fizer por estar. Aqueles de quem gosto sabem quem são. Esses nunca hão-de ir. 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

De olhos postos no passado


É raro pensarmos no presente. Pensamos no filme que vimos ontem, naquilo que ainda temos por fazer no trabalho, num ou noutro episódio engraçado de infância ou mesmo naquilo que gostaríamos de ser dentro de dez anos, projectando um caminho possível para alcançar a meta final.

É raro termos um pensamento descritivo que defina o preciso momento presente, como um “agora estou a bater nas teclas de um computador” ou “agora o pé direito, agora o pé esquerdo”.

É igualmente divertido observar o que temos à luz do passado. Ou por outra, projectar um possível ou provável futuro tendo em conta aquilo que já vivemos ou as pessoas que já conhecemos. Aliado a isto, há um outro pormaior. O acaso. O acaso de encontrarmos, por mera eventualidade, alguém que já conhecíamos, que a vida se encarregou de nos fazer sair do caminho e que, um dia, por ventura, decidiu devolver-nos.

Mero exemplo ilustrativo: imagine-se um rapaz, despreocupado e a manter um hábito comum, que opta, num domingo como outro qualquer, passear numa livraria. Mistério do universo, horas antes, uma rapariga que o conhece vagamente, decide, sem o saber, que vai passear à mesma livraria que esse ser que não encontra há largos anos. Vêem-se, redescobrem-se. O que virá daí é outro mistério universal. Ligado ao futuro e nunca ao presente. Um mero encontro entre duas pessoas tem uma probabilidade equivalente de significar um nada absoluto tão redondo quanto um zero ou de provocar um evento cataclísmico na vida de algumas centenas de pessoas.

À luz daquilo que vivemos, olhamos para os eventos e, em última análise, para as pessoas segundo aquilo que partilhámos ou conhecemos delas. Valerá a pena? O passado dir-nos-á se sim ou não. Seja por influência directa ou por vivências comparadas.

“Estamos a avançar para o futuro enquanto olhamos apenas para o espelho retrovisor” – MM

sábado, 27 de outubro de 2012

As sereias existem

Hoje vi uma sereia. De longos cabelos loiros, alta, suave nos movimentos. Não a vi na água. Longe disso. O estranho ser arranjou maneira de se escapulir da sua Atlântida pessoal e foi dar a uma sala de aula - sabe-se lá porquê.

Não lhe ouvi a voz. Não sei se fala alguma espécie de linguagem humana. Sabe escrever. Vi-lhe a pequenita letra sem conseguir descortinar uma palavra que fosse.

Olhou-me nos olhos. Fiel ao estereótipo, tem vítreos e oceânicos olhos verdes. Durante o aparentemente breve momento em que nos fitámos, não houve nada daquilo que vemos nos filmes. Nem fascínio, nem aperto no peito, muito menos paixão. Foi um simples olhar sem duração mensurável.

Muito provavelmente, nunca mais a verei na vida nem em terra. Mas um dia vou poder dizer aos meus netos que as sereias existem. Porque hoje vi uma.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Bom de ouvido


O dia-a-dia é aborrecido. Não é a notícia que lemos no jornal nem a pessoa macambúzia que vem ao nosso lado no metro que dão uma nova vida ao nosso quotidiano. Pode ser mas, geralmente, não é. Aquilo que nos entusiasma é, em 90 por cento dos casos, a arte. Seja ela qual for. No meu caso, é a música que faz esse trabalho de espicaçar todas as pequenitas células do meu corpo, que têm uma certa tendência natural para adormecer.

Ontem assisti ao ponto alto dos últimos tempos de uns quantos milhares de portugueses. Numa decisão que tinha sido já tomada há uns meses, efectivada pela compra de um pedaço de papel que todos cremos ser um bilhete de concerto, fui ver a música dos Ornatos Violeta.

Impressiona-me a capacidade que cinco indivíduos têm de criar algo que deixa em êxtase uma sala cheia de gente. O momento da criação de uma “Ouvi Dizer” ou de uma “Chaga” deve ser uma verdadeira epifania. Gostava de ter uma dessas. Não tenho medo de confessar: tenho inveja dos artistas.

A verdade é que a música tem um papel fundamental na vida de todos nós. Antes de mais, é ubíqua, omnipresente. Ouvimo-la em todo o lado. Mesmo quando não queremos. Especialmente quando não queremos. No carro, na rua, nos centros comerciais, nas lojas, em casa, na TV. Em todo o lado.

Quando não a queremos por perto, chega a irritar-nos. Porque gostamos de música. Mas não desta música. Pelo menos comigo é assim. Não gosto de coisas repetitivas como música electrónica ou aquelas canções orelhudas que passam na rádio, que nos dizem para ir ver os aviões não sei aonde ou que um sul-coreano qualquer decidiu gravar. Dessas não. Gosto doutras coisas. Do género daquelas que o Manel Cruz grava. Daquelas que o Manel Cruz cantou ontem e pôs meio mundo aos saltos, na pequenita sala do Coliseu de Lisboa. Sim, essas mesmo.

Quando oiço dessa música, a vida muda. Para melhor. Os tipos que cantaram aquelas letras numa sala esconsa parecem sempre falar-me ao ouvido e conhecer a minha vida ao mais ínfimo pormenor. Além disso, os músicos que compuseram aquela miríade de sons parecem saber exactamente aquilo que preciso de ouvir.

Depois, tenho a sorte de ter um bom ouvido. Não é gabarolice. É uma qualidade assumida – nos dias que correm, ser-se humilde é politicamente correcto, por isso não são só os erros que precisamos de assumir, mas também as nossas qualidades. É uma das minhas maiores qualidades. Ainda me lembro das músicas de Offspring que, no sossego do meu quarto, transpunha de ouvido para a guitarra. Por isso, sei ouvir música. Sei prestar atenção a cada detalhe de uma canção. Quem me conhece bem sabe que não minto.

Quem me quiser fazer feliz, leve-me a um concerto ou dê-me uma viola para as mãos. Está feito. O menino está alegre durante umas horas e fica satisfeito durante dias. Música é boa comida. Música é um livro fabuloso. Música é sexo. Música é uma viagem intensa daqui ao outro lado do universo que dura três ou quatro minutos. Música é tudo isso e muito mais. Posso ter os ouvidos a zunir depois do “Pára-me Agora” ou do “Capitão Romance”, mas vale a pena. A vida não é o dia a dia. A vida é um aborrecimento que vale a pena atravessar penosamente por causa de momentos de extrema felicidade trazidos pelas coisas que amamos. Se assim não fosse, o meu pedido diário seria “Mata-me Outra Vez”.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Da amizade e outras histórias


Estamos completamente sozinhos por cá. A verdade é essa. Temos uma casa craniana na qual vagueia uma pandilha de ideias e convicções. E à nossa volta circulam espelhos, que reflectem tudo o que vêem e apreendem. Nada de novo até aqui.

À minha volta, há dois espelhos que engrandecem a minha própria capacidade de reflexão.

Comecemos pelo princípio. O W. O sempre atabalhoado W. Sujeito que desafia a morte a cada pedaço de condução que lhe passa pela vida. Agarra num volante e é mais perigoso que um macaco a manusear uma Kalashnikov. Mas é o maior. É um contador de histórias à antiga, sabe dar uma carga emocional espantosa a cada experiência da sua vida – especialmente com as suas side-kicks C. e J. Vê-lo ao volante a lançar palavras ao ar enquanto gargalho sem qualquer pudor é daquelas coisas impagáveis que nem todos têm a honra e o prazer de ter.

Do outro lado do ringue, o P. O sacana do P., com a sua lata icomensurável, sempre a dar-me lições de vida. Diria que é a minha consciência em forma de pessoa. Quando concorda comigo sinto-me um filhote leão que conseguiu agradar ao pai na sua primeira caçada. Quando discorda, tento compreendê-lo com uma certa melancolia que me percorre a alma e me diz “estúpido! Da próxima faz melhor”. Costumo vê-lo na bancada de um grande estádio lisboeta. Mas falamo-nos todos os dias – bendita tecnologia.

Eu – como todos nós – tenho irmãos. Não necessariamente de sangue, mas destes. Os amigos são a família que podemos escolher. Eu não os escolhi. Encontrei-os. Sou um sortudo de primeira.

A vós, grandes W. e P. Adoro-vos. Como gente e como companheiros de viagem. Isto não seria o mesmo sem vocês. E vocês sabem-no.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Números


Não importa quem sou. Importa que existo, algures nos arrabaldes da capital portuguesa, e, dentro de alguns dias, serei mais um número nas estatísticas dos desempregados. Um número sem rosto. Um rosto sem emprego. Mas com muito trabalho em mãos.

Engraçada esta forma de nos definirmos a nós mesmos com um título profissional.

Quando me perguntam quem sou, a primeira resposta (a mais natural) diz que “sou jornalista”. Mas isso define-me? Não. Sou mais que isso. Nem pior nem melhor, apenas mais. O jornalismo é uma parte de mim, mas há tantas outras coisas que me compõem.

Quem sou eu?
Sei quem sou, mas não o consigo explicar.
Também não é importante.
Porque sou um número.

O número tem vida?
Sem dúvida.
Tem amigos?
Muitos e dos bons.
Tem namorada?
Pela primeira vez, ao fim de alguns anos, não. E confesso que é estranho.
E esse número de que falas, tem ambições?
Não muitas. Não preciso de muito para ser feliz. Ainda assim, sou ambicioso. Num mundo ideal, estaria na Universidade C., dentro de cinco anos, a dar aulas a turmas de miúdos. E disso fazer a minha vida. A ideia apraz-me muito – estabilidade, tranquilidade e estudo. Mistura perfeita.

A partir de agora terei mais tempo em mãos. Para me aplicar no doutoramento em Ciências da Comunicação – afinal de contas tenho uma tese para escrever; para aprender e compor mais música e para tentar escrever um livro. Além disso, criei um blogue. Mais um num oceano de milhões. Mas os meus textos são egoístas. São escritos, em primeira análise, para mim. À artista. Resolvo partilhá-los porque alguns podem identificar-se com eles e transpô-los para as suas vidas. Ou porque podem ser apenas um passatempo interessante para quem quiser ser uma fly on the wall na vida de um desconhecido, de um vago conhecido ou de um amigo próximo.

Não espero ter muitos leitores. Não espero ser lido muitas vezes. Mas espero fazer a diferença para quem me lê.

Sou um número. Mas prefiro as letras.