quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Quando?

O que é, afinal de contas, isso de ser escritor? Sê-lo-ei, hoje ou algum dia? As frases jorram com maior avidez do que aquela com que as consigo atirar para o papel. Muitas ficam nos espaços entre os momentos, nos espaços entre os pensamentos.

Mas um escritor não escreve, apenas. Observa, vive, constrói um mundo que é só seu para, um dia, o entregar a quem o queira experimentar também. Mesmo que seja por um dia, mesmo que seja por uma vida. Quem sabe.

Ninguém.

Quem escreve não é escritor. Eu escrevo mas não o sou. Ainda.

Quando? Qual é o segundo genético que torna o que não é naquilo que passa a ser? Nasce-se, assim?

Um dia sabê-lo-ei. Quando me derem um cognome à altura. O escritor. Por enquanto, não o sou, para os outros. Sou escritor só para mim. Porque quero sê-lo, mais que tudo.

A escrita é o habitat natural, o lugar ao qual sempre regresso. A concha, quente, afável, de sempre. À secretária, escrevendo.

"Toda a escrita é estar parado a ver o mundo andar." - GMT

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A(r)tarantado

Carradas e carradas de ideias. Parece que um camião carregadinho de estímulos atira sobre mim, dia após dia, mais uma encomenda de forquilhas para me irem picando os dedos.

Escreve mais, escreve sobre isto, escreve sobre aquilo, parecem dizer-me.

E eu, com o tempo a escapar-se-me dos bolsos, ando atarantado com tanta arte por cumprir e tão pouca vida para a sustentar.

Vou guardando as ideias num aparelhinho que inventaram há tempos - benditas tecnologias. Sim, porque o meu sótão tem pouco espaço para tanta caixa bonita e ornamentada.

Falta abrir-lhes o conteúdo, ver o que dali sai.

Acção.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

É hoje

É hoje.

É hoje que dou o pontapé de saída num sonho que pretendo manter vivo até ao último suspiro dos meus dias. As letras. A elas presto homenagem, todos os dias, e é delas que vivo.

Não fossem as letras e não sei o que seria deste rapazito.

Hoje é lançado o meu primeiro livro, um daqueles que me faltava ler. Como ninguém ainda o tinha escrito, escrevi-o eu.

Ando à procura da minha voz, nem sequer sei se sou escritor ou algo que o valha. Mas tento. Arrisco e não corto vazas aos meus devaneios criativos. Faço-o por quem me queira ler, por quem possa ou não gostar do que faço. Busco nos recantos mais ermos da minha mente os estranhos solilóquios das emoções misturadas com esta ou aquela ideia. Sem medos. Sem auto-censuras.

Tenho de agradecer à C. Há precisamente oito meses, espicaçou-me. Inspirou-me a escrever, incentivou-me. Foi a primeira a ler o rascunho do meu livro. "Publica", disse. Querer-me-á alguém?, interroguei-me.

Tenho de agradecer ao FR, o portentoso vocalista de uma das maiores bandas nacionais de todos os tempos. Aceitou generosamente apresentar o meu primogénito literário.

Aí está ele. Saiu hoje.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Inquietações

O tempo urge sempre, daí que a paciência seja uma das maiores virtudes. É preciso esperar, saber o momento certo, ouvir as pessoas ideais. Ousar saber. Mais que isso: ousar ser sábio. 

A primeira frase de um livro novo é irrepetível e, ao mesmo tempo, um ponto sem retorno. Começou-se. Se fica inacabado, é um falhanço ou, pelo menos, obra sem voz e sem expressão. O peso sobre os ombros de se trilhar o caminho até ao último ponto final é quase incomportável. Leva-se a paciência ao extremo, página a página, linha a linha. Sem contar, sem olhar para o número e atentar simplesmente na qualidade do que é escrito. Siga-se caminho sempre de olhos postos lá na frente, na curva seguinte e na contracurva que não se deixa antever.

Os primeiros passos estão dados, as primeiras pegadas impressas na terra batida. Ainda há horas, dias ou meses pela frente. A escrever - como a ler - é o caminho que faz a viagem, não o sítio que nos aguarda.

"Subi à montanha e olhei lá para baixo. Pensei, se me atiro daqui abaixo, acabou-se tudo, não há mais livros." - JS

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Ideias que aparecem sem avisar

Não é segredo para ninguém que ando a escrever outro livro. Acontece que a busca por uma boa história se torna incessante. Acho que encontrei uma narrativa capaz de fazer o que a literatura faz (ou deve fazer). Descobri um caminho. Até que.

Até que se me deu um nó na construção do caminho das personagens. Estagnei, ali, algumas semanas.

É precisa pachorra para escrever. Nem tudo surge em catadupa, as páginas não se avolumam ao ritmo pretendido. Ao mesmo tempo, há outros leitores para manter entretidos. Senão se aparece, é-se esquecido. Tornamo-nos irrelevantes.

Felizmente, as coisas boas aparecem-nos à frente quando menos esperamos. Também assim acontece com as ideias. Esta manhã, foi assim.

A meio da habituada caminhada matinal pela ainda vazia baixa lisboeta, uma ideia esperava-me a uma esquina, como quem pede lume para acender uma cigarrilha. Falei com ela e aceitei-a como desbloqueio mental.

A parte mais interessante no meio de tudo isto é o efeito imediato que as ideias trazem aos paradigmas por nós mesmos estabelecidos. Tinha um título para o novo livro há coisa de três meses. Hoje, de um pinote, o título ficou invertido a 180 graus, só por causa de uma simples ideia.

Fascinam-me as máquinas poderosas que todos albergamos nos capacetes cranianos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Resolução

Ao olhar para as prateleiras da biblioteca, há lacunas que falta preencher. Busco pelas livrarias e não acho o que pretendo.

A conclusão surge. Farei os livros que me faltam ter.

domingo, 16 de junho de 2013

Letras, letras e mais letras

As últimas semanas têm sido pródigas em novidades. Se nos últimos meses me queixava por nunca ter muito que fazer e procurava manter-me ocupado com tarefas ligadas ao enriquecimento cultural e ao desentorpecimento das habilidades guardadas debaixo do capacete craniano, agora sinto-me no ambiente que me tem vindo a definir. Inundei-me em trabalho.

Gosto desta maravilha que é fazer várias coisas ao mesmo tempo, com um denominador comum: as letras. Quanto mais escrevo, mais quero escrever. Sete ocupações distintas e de todas dependem as palavras que escrevo. Se algum dia perder a capacidade do raciocínio encadeado ou da mais pura visão do que escrevo e leio, perco com elas a vida. 

Bem sei que nem todos têm este gosto extremo pelas palavras e pelo que podemos fazer com elas. Ainda assim, quem se apaixonou por palavras e letras, sabe bem do que falo. O espantoso no meio de tudo isto é a viagem agradável que se faz de tarefa em tarefa. Agora uma crónica, agora um texto para o blogue, agora uma página de um próximo possível livro, agora três linhas definidoras de uma tese de doutoramento. Cansado? Então pára. Para ler. 

Assim será a minha vida nos próximos 12 meses, pelo menos. Haja energia. 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

O belo 13

Nos primeiros minutos de 2013, respirei fundo e imaginei cada um dos 365 dias que aí vinham, com todas as suas dificuldades, desafios, alegrias e milagres à espera de acontecer. Acreditava profundamente que este seria o ano da mudança, o ano cataclísmico da minha vida, aquele que definira o meu futuro. 

Não sabia de que forma tal pudesse acontecer mas, simplesmente, sabia-o. 

A verdade é que desde então tudo tem melhorado e os paradigmas têm vindo a ser alterados, aos poucos. 

Tornei-me escritor, estou prestes a lançar um livro, comecei a publicar crónicas e... Arranjei emprego novo.

Há pessoas importantes que têm assistido a tudo isto desde o camarote presidencial. Todas elas sabem que são e é a elas que estou agradecidíssimo. 

Acima de tudo, isto é esperança. A vida pode ser uma cabra de vez em quando, atirar-nos lá para o fundo do poço sem qualquer misericórdia. Mas tudo não passa de uma provação, de uma lição de humildade e, ainda mais importante, um colocar em perspectiva os nossos dias e o que decidimos fazer com eles. 

Apaguem as luzes e desfrutem do espectáculo.

"Como é linda a puta da vida." - MEC

terça-feira, 14 de maio de 2013

Elogio da idade

Tenho uma guitarra eléctrica. Tenho uma guitarra eléctrica preta que me arranca sensações únicas de cada vez que lhe sinto o peso nos ombros, de cada vez que os dedos cirandam pelas suas cordas. De cada vez que a oiço ganir e gemer a cada ataque de palheta. 

Há dias, após não lhe ter pegado durante meses, reparei que a ferrugem começava já a ganhar terreno nalguns lugares de maior uso. Junto aos orifícios de onde saem as cordas, também elas já carregadas de fuligem, nos botões de controlo de volume, até no pente que suporta as ripas de metal sonoro. 

Afligi-me. Quis pôr a minha ainda jovem guitarra no salvador das almas instrumentais, dar-lhe uma cara lavada, trocar-lhe as peças, recauchutá-la e pô-la toda limpinha e bonitinha. Como nova. 

E depois... Não.

Não quero a minha guitarra nova. São as mazelas que lhe causei que contam a sua própria história. Sãos os grãos de ferrugem agarrados ao metal que dizem o quanto já foi usada. Ao olhar para o gasto dos materiais sei quantas foram as canções ali tocadas, quais os momentos unicos e irrepetíveis, quais os dias em que me fez sentir o melhor roqueiro do planeta, apesar de estar fechado dentro de quatro paredes e não ter outros ouvidos humanos à escuta que não os meus.

Guardem-se as coisas, velhas. São elas que nos relembram que houve um passado. E que, por isso mesmo, haverá um futuro. Quando deixarem de funcionar, saberemos que, como elas, também nós não somos eternos. 

Se eu renovar a imagem da minha guitarra eléctrica, é ela quem zombar de mim quando eu estiver velho e não souber como ser levado ao salvador das almas humanas. É ela que vai dizer: deste-me a longevidade mas perdeste a tua. 

Envelheçamos à vontade. Todos.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

O jogo do título

Sim, hoje escrevo sobre bola. Não é hábito meu, mas hoje acontece. (Aos não-amantes da modalidade: lamento.)

Gosto muito de futebol. Não é uma confissão. É uma declaração. Não se confessa o amor por alguma coisa quando sabemos que não é errada. Gostar de futebol é tão legítimo quanto ter um carinho especial por arroz de cabidela ou partidas de xadrez. É um jogo, um entretenimento, uma exibição regrada do expoente da capacidade humana na habilidade de manipular uma bola com os pés.

Amanhã há jogo grande. As duas melhores equipas do campeonato nacional vão bater-se por um título desde sempre ambicionado. A rivalidade é grande, adivinham-se paixões que a razão não consegue (nem quer) justificar.

Atrevo-me a usar um cliché. Pois que vença o melhor. Estou a ser sincero. Como disse, adoro futebol e esse amor profundo pelo jogo per se não me deixa ficar toldado por clubices. Simpatizo com uma equipa que não joga amanhã, mas prefiro - de longe - assistir aos jogos de quem sabe jogar. A "minha" equipa não o tem feito, não o tem sabido fazer.

Amanhã quero ver um grande jogo. Tenho a convicção (e uma ligeira vontade) que o sul ganhe a batalha, pela perseverança e regularidade do seu bom jogo mantidos durante a guerra inteira. 

Os rapazes merecem-no. Pelo bom nome do futebol e do amor dos que o sentem a correr-lhes nas entranhas. Ainda assim, guardem-se os fundamentalismos no bolso e assista-se, desinteressadamente, a um belíssimo jogo de bola. 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Sem musas não há arte

É a triste e indelével verdade. Sem musas não há arte. Sem elas, nada se faz. Os propósitos morrem, as vontades perdem sentidos e a força motriz artística esmorece de uma vez só. 

Cada um terá a sua. Secretamente, porém, cada um terá várias. Há momentos em que uma está próxima e, por isso, tem todo o tempo de antena, tirando a abertura a qualquer possibilidade alternativa. Há também as épocas (ou simples laivos que duram minutos) em que os se's não têm medo de se instalar. E fazem-no, vaidosamente. 

E se fosse assim ou assado, com aquela miúda giríssima, carregadinha de potencial e, no entanto, inalcançável? E se?

Possibilidades improváveis. 

Não sei como seria. Só se podem pintar quadros idílicos em telas hipotéticas. Mas, acto contínuo, nasce a arte, com a musa em mente. Nasce, assim, sarapintada e sem pedir licença. 

Francamente, já houve algumas. Mas hoje, neste dia irrepetível, és tu quem cria inspiração num cérebro semelhante ao teu. Naquela linha bonita que tive a sorte de escrever, naquele encadeamento melódico de acordes que os meus dedos fizeram soar ao escorregar pelas cordas de uma guitarra antiga. Devo-te isso. Obrigado.

"Once you feel love, you'll taste the pain." - SN

quarta-feira, 17 de abril de 2013

História nova

Não consigo explicar como me nascem as ideias. Quando dou por mim, já as estou a desenvolver. 

Saio de mim, vou para longe. Embarco na história, construo possibilidades, testo-as. E, sem esperar, volto a mim. E descubro-me. Onde estou a pensar nisto? Ao volante, no duche, ao deitar, ou até mesmo quando a minha sombra desliza sobre a calçada portuguesa. 

Tenho o puzzle todo aqui. Acho que os próximos meses serão passados a montar-lhe as peças.

"Até na execução de rotinas há micromudanças." - MF

domingo, 14 de abril de 2013

Recordações de papel

Não tenho o hábito de os guardar. Por uma mera eventualidade, todavia, dei por mim a (re)descobrir um monte de talões antigos num receptáculo que não nasceu com esse indigno propósito. 

Um amontoado de papelada obsoleta que mais não faz senão descrever episódios recentes de uma vida que já passou ou que ainda se vai vivendo. 

Aquele quase-jantar com o B antes de um concerto intenso. Ou a refeição com o W perto de um lugar familiar e, ainda assim, com uma desconhecida. Ou, ainda, aquele lanche com uma amiga de longa data. 

Os talões falam pelos eventos pelos quais pagámos para viver. Mas dialogam também pelo antes e pelo depois. Contam histórias. Histórias que, infelizmente para todas as ricas narrativas que se poderiam construir, não ficam escritas. Ficam, isso sim, inscritas na memória de não mais que três ou quatro pessoas. Incapaz de ficar gravada algures. Presa na memória de indivíduos até ao dia em que, libertando-se, se perde para sempre. 

Guardem-se, pois então, os talões. Com legenda.

Para um dia termos alegres recordações de uma vida que foi a nossa e que não nos parece já, à distância, familiar.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Desaparecido

Nos últimos dias, não escrevi. Vivi.

Olhei, absorvi. Não pus pensamentos num disco rígido, muito menos os gravei numa folha de papel.

Vivi, deixei-me estar. Ri, gargalhei, ouvi, tentei aprender, temi por mim e pelos outros. Meti na gaveta a presunção de que tenho algo a ensinar a quem me quiser ler as letras ou ouvir as palavras. 

Analisei vidas que não são minhas. Fugi de mim à procura de outras estórias - até porque não há nada a tirar desta rotina quase pobre. 

Muni-me de quem vi.

Li. Bebi de quem sabe.
Vivi. Aproveitei cada gesto, cada experiência. 
Enchi o depósito.
Amei cada segundo. Mesmo.

Nos últimos dias, não escrevi; vivi. Hoje, empunho a caneta mais uma vez. E escrevo. Mas não deixo de viver. Faço-o, só que de outro modo.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Estrada com duas saídas

As melhores coisas são as que não esperamos. Depois há aquelas que, mesmo que estejamos a aguardá-las, possuem o crivo inabalável da surpresa. Estarrecem-nos. Questionam-nos, cara a cara, se valeremos assim tanto a pena ou, no fundo, seremos apenas mais uma desilusão. 

O caminho ascendente traz a si atrelado um risco inegável de uma queda trapalhona capaz de nos partir sete ou oito ossos orgulhosos. É, todavia, gradual - ou deve ser. Já nos diz o cliché: quanto mais alto se está, maior é a queda. Resta ir apalpando terreno. Especialmente porque há tempo pela frente. 

É sempre bom fazermos umas quantas retrospectivas. Escrever a nossa própria história. Aquela que nos esquematiza um caminho que, outrora, nos parecia atabalhoado e confuso. Ver o olhar descrente de uns e as vontade e estímulos de outros - dos que verdadeiramente importam. Observar as passadas, umas mais largas e confiantes que outras. 

Encarar as pessoas que nos apoiaram e que deram os conselhos ideais. Curiosamente, são os mesmos que, ao saber das boas novas, estão do nosso lado, com orgulho genuíno. E incondicional.

Agora falta saber o caminho que se segue, depois de uma acha que nos acende a fogueira da convicção. Não deixo a alegria toldar-me. Pelo contrário; o reconhecimento acarreta responsabilidades acrescidas. Pressões que os ombros não sabem se aguentam sem ceder um milímetro que seja.

Vou por ali. Obrigado aos que vêm comigo desde sempre.

"Writing, at its best, is a lonely life." - EH

sexta-feira, 8 de março de 2013

Um sonho.

De volante na mão. É a estrada que passa - qual tapete puxado por misteriosas forças - por debaixo das rodas, fazendo-as rolar. É noite. As luzes cuspidas pelos postes fazem brilhar de forma ritmada o pára-brisas. A macadâmia deve estar sedenta de automóveis, tal a ausência de máquinas vivas por ali, àquela hora. Deve ser madrugada.

No espelho, dois revêem-se e descobrem, lá atrás, ao longe, dois pontos luminosos que se aproximam.

Ao ultrapassar este carro, um rosto familiar deixa-se mostrar por entre o vidro do bólide que agora chegou. Num fugaz vislumbre, reconhecem-se.

Acto contínuo, há sinais luminosos que demonstram simplesmente vontades e desejos que não podem esperar.

Na berma de uma estrada deserta, embrulham-se num abraço e sorvem os espíritos num beijo apaixonado. O tempo pára, perde o sentido que normalmente tem. Podia ter passado um segundo ou três décadas - quem sabe?, é igual.

Não são trocadas palavras; o olhar basta. Dois caminhos que desafiam as leis da geometria. Primeiro paralelos, depois intersectando-se para, mais tarde, se sobreporem e, eventualmente, tornarem-se num só. 

Acordar. Negrume da escuridão. Calor no coração.

"The land at the end of our toes goes on and on and on and on." - SN

terça-feira, 5 de março de 2013

A morte passou-me à frente

Ainda antes de escrever as linhas que aí vêm, ponderei seriamente se devia ou não fazê-lo. Porque é um assunto íntimo daqueles que o sofreram directamente. Em respeito a eles, hoje, excepcionalmente, não esconderei nomes nem fontes. Eu vi, estava lá, por isso tomo a ousadia de me apropriar do direito de contar a história conforme estes olhos a viram. 

Cá vai, directo ao assunto: vi uma pessoa morrer.

Não haverá muita gente que o possa dizer - felizmente. Eu declaro, sem reservas: é um trauma. Mesmo quando nunca antes havia visto aquele desafortunado rosto. 

A doença de uma amiga fez-me ir até ao IPO. Ala dos doentes terminais. Na cama ao seu lado, uma paciente recebia a visita - soube eu posteriormente - de familiares próximos: o marido e a filha. O núcleo duro daquela família estava ali mesmo, à vista de quem quisesse olhar, à beira de ser estilhaçado em mil bocadinhos.

A certa altura, sem saber porquê, senti-me impelido a observar aquele quadro vivo. 

A mulher, deitada, fragilizada ao limite humanamente possível pelo cancro que se revelou fulminante, deglutia a custo aquele jantar. A filha, bonita, de luzidios olhos verdes, lutava para não se desfazer em lágrimas. O marido parecia estar noutro sítio, longe, escondido atrás de uma muralha intransponível, olhando sem reacção o estado a que chegara a pessoa que amava. 

Sem nada o prever, a mulher solta um gemido, suficientemente audível aqui deste lado. A filha, aflita, clama por uma enfermeira. 

Não sei quanto tempo passou, tal era a sensação surrealista do que eu, ingenuamente, julgava acontecer só naqueles filmes pesadões. Até cair em mim, senti-me desligado, alienado e, acima de tudo, impotente perante tudo aquilo. Estava a observar uma peça que não tinha sido encenada para mim e que, por mero acaso, vi.

O reboliço tornou-se tremendo. Acho que contei cinco enfermeiras e duas médicas. Uma delas, depois de fechar violentamente as cortinas da cama, disse, alto e bom som, a frase que ainda agora ressoa na minha mente.

"Ela está a morrer."

Ouvi gemidos. Ouvi gorgolejos que terão atirado cá para fora aquele jantar amavelmente preparado e que havia sido saboreado há pouco. 

Uma enfermeira ainda lhe atirou duas perguntas:
 - Como se chama? Diga-me o seu nome! - talvez apenas num mecanismo de reconhecimento da consciência daquela pobre mulher.
 - Ana Paula - respondeu.
 - Quantos anos tem?
 - Quarenta e oito. - Esta parte foi particularmente chocante para mim. A precisa idade da minha querida mãe.

Não aguentei. Saí. Quase a correr.

Cá fora, tive vontade de abraçar a rapariga dos olhos verdes que, abandonada a si mesma, no corredor, chorava agarrada a um lenço de papel amarfanhado e ensopado em sofrimentos. 

Não demorou muito até receber a notícia. 

Eram 19h40 do dia 4 de Março de 2013 quando a Ana Paula partiu, para morar apenas na memória daqueles que viveram a vida com ela. 

Eu, sem pedir, fui uma dessas pessoas. E ela nem o chegou a saber.

sábado, 2 de março de 2013

Alienígena

Uns poucos dias longe do mundo habitual dão-nos sempre a ideia de estar a ver a nossa vida do alto de uma outra montanha. Os motivos para essa fuga, voluntária ou involuntária, são inomináveis, de tão variados.

Os meus motivos não são bons, ao que vejo daqui. Pareço estar a viver uma verdadeira revolução. E - já se sabe - as revoluções dão sempre merda. De entre as coisas fantásticas que vão ocorrendo, parecem sempre surgir elementos que me alienam da vida. Há eventos que me desligam da ficha, que me fazem viajar para outra dimensão, que me fazem perder o oxigénio neste suporte básico de vida.

Os objectos parecem perguntar-me, matreiros, em tom de desafio, se seria eu lembrado e saudoso se desaparecesse desta terra. A vida faz-me perguntas destas. E eu...

E eu.

Não soube responder.

Sinto-me longe, desligado, destrambelhado, dessincronizado, apagado, perdido. Há amigos que não me põem a vista em cima há semanas. Há hábitos que já não aparentam definir-me. Há esta vida que já não é a mesma de outrora. 

Não sei para onde estou a ir. Mas não paro de caminhar.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Quadro novo

Sem querer, construímos novas paisagens onde reaprendemos a movimentar-nos. A mesma moldura, outra imagem. A mesma vida, outros hábitos. A mesma identidade, outro paradigma.

Nós. Sempre nós e as sacanas das nossas decisões. Sempre.

Nada muda verdadeiramente, ainda assim. Por muito que aprendamos.

E, de repente, uma dúvida.

Terei já vida suficiente para escrever o meu próprio livro?

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Insónias 2.0

Deitado. De olhos fechados. Tranquilo. Aparentemente.

Por dentro, irrequieto. O meu coração ribomba e faz-se ecoar nos meus ouvidos com uma ressonância incrivelmente anormal. Não há decibéis que meçam toda esta barulheira.

São 3h28 da madrugada. Não há sono que me assalte. Porquê?, pergunto. Não sei, respondo. Quero dizer...

... até sei. Talvez não o queira admitir a mim mesmo.

Sou vagabundo encurralado nos meus próprios dias. Vagueio pelas ruas do pensamento sem encontrar estradas que não terminem em soturnos, frios e escuros becos.

Tenho sono, agora. Mas... Terei? 

Nunca adormecerei deste pesadelo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O passado como caneta do futuro

Estamos condicionados pelo que fizemos ontem, durante a semana passada ou há uma década. Quer queiramos quer não, é isso que nos define. ainda que nos arrependamos do que fizemos ou dissemos a alguém que teve a sorte (ou o azar) de se cruzar connosco, algures, num dia de uma página de calendário já rasgada.

Independentemente disso, parecemos não dar conta dos eventos importantes nos precisos momentos em que se escarrapacham diante dos nossos narizes empedernidos. Aquilo que represente um pequenito bater de asas de uma borboleta pode bem capaz de ser, bem vistas as coisas, o (ou um dos) evento(s) sísmico(s) catalisador(es) e dinamizador(es) das nossas vidas. 

Aquela pessoa que começou por ser mais ou menos indiferente pode vir a ser o humano que partilhará toda (ou, pelo menos, grande parte) da sua vida connosco. Aquela decisão ínfima pode definir o caminho que percorreremos nos próximos tempos. Aquele livro que nem estávamos a contar ler pode dar-nos uma lição para todo o sempre. 

As frases que escrevemos no passado também contam a nossa história. E, acima de tudo, são as notas aparentemente dissonantes que carregam toda a originalidade daquela música que tanto veneramos. Prestemos, pois, a devida atenção aos detalhes, para um dia lhes conferirmos o seu devido valor.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Decisões. Das grandes.

O momento em que uma decisão nos acerta é incomunicável, não somos capazes de descrever o sentimento em questão, o fulgor que se ergue dentro de nós, a ânsia no peito com vontade de efectivar isto ou aquilo com efeitos práticos e imediatos.

A todos os (especialmente nos mais improváveis) momentos, uma nova actualização, uma nova ideia, uma acha fresca pronta para ser queimada na fogueira de pensamentos que acarretamos em nós. Todos os locais se tornam icónicos pela epifania que em nós operaram.

Quando tomamos uma decisão, é isso que se torna no centro da nossa própria existência, ainda que, por vezes, tal aconteça por pouco tempo. Numa chama atiçada do passar dos dias, acreditamos que é uma mudança de caminho que nos pode alterar profundamente a vida. 

No meu caso em concreto, não sei se é. Dentro de alguns meses, sabê-lo-ei. Até lá? Fazer. Fazer, fazer, fazer. Insistir até não mais valer a pena.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A um herói que nasceu há dias

Não costumo torcer o nariz às dificuldades. Da mesma forma, admiro quem as enfrenta com o fulgor de um cão danado em busca daquele naco de carne que vale pela vida. Olho como heróis aqueles que conseguem feitos que, a mim, me parecem inalcançáveis, de tão difíceis que são de transportar para o meu próprio quotidiano. Há poucos dias, um dos meus melhores amigos tornou-se num verdadeiro herói.

Perder um amigo de infância às mãos da emigração é tão indolor quanto arrancar um rim a sangue frio. É um quase-luto de alguém que já foi, que era e que já não é. Não por ter morrido, mas por lhe terem assassinado (ou mesmo suicidado) as possibilidades de uma vida melhor. Chamem-lhe governo, troikas, conjecturas sócio-económicas ou simplesmente azares da vida. Mas o estoicismo desta gente que muda de rumo por dias melhores é de louvar. Eu não conseguiria - admito-o. Ou, por outra, teria de o conseguir se me visse forçado a tal. Mas a muito custo e só depois de testar todos os outros subterfúgios possíveis e imagináveis.

Uma coisa é certa: G, tens uma estatueta dourada cá em casa. Eu e os teus aguardamos o teu feliz regresso. Boa sorte nas tuas aventuras por terras escocesas.

Podes não ter um país inteiro a torcer por ti, mas o que aí farás representará, para muitos, o país onde nasceste e que agora deixaste.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Um reencontro daqueles

Os anos. Esses malditos e tramados abstractos que se acotovelam entre amigos e levam a melhor nessa separação indesejada mas, nuns casos ou noutros, inevitável.

Os anos passaram. Deram-nos umas oportunidades e tiraram-nos outras - nomeadamente as de v(iv)er alguns dos amigos que cresceram junto a nós. Ainda assim, há possibilidades que são isso mesmo: possíveis.

Ontem, graças à vencedora vontade do querer fazer acontecer, houve História. Dessa, precisamente, com maiúscula. Juntou-se um grupo que, não tivessem sido as marcantes vivências próprias da infância, não mais seria que composto por simples desconhecidos. 

Encontrámo-nos. Num restaurante ermo. Fui dar com eles em amenas cavaqueiras, já jantados. Não tenho vergonha em dizer que me emocionei ao ver alguns daqueles rostos, ali assim, hoje tão adultos e, invariavelmente, com os traços risonhos e meninos de outrora.

Entre eles, seres humanos que, de uma forma ou outra, ajudaram a definir a pessoa que hoje sou. Dois deles foram os meus melhores amigos ao longo de meses e meses e meses. Sim, I e AM, estou a falar de vocês. Por perto, um dos mais duradouros e resistentes (e, lamentavelmente para o meu pequenito eu de há anos, não-correspondido) amor: M.

Estar, uma década depois, na presença de um grupo que foi ambiente natural do meu crescimento é esmagador. Porque olho para todos eles e a familiaridade daqueles olhares, daquelas vozes e daquelas gargalhadas é para mim fonte de gigantesco fascínio. Porque, ao mesmo tempo, ponho em perspectiva tudo aquilo em que me tornei para concluir que, para todos os efeitos, continuo a ser o rapazinho daquela escola. O mesmo que meneava a portentosa mochila ao mesmo tempo que viva em comunidade com aquela gente. 

Estamos crescidos. E, ainda assim, estamos na mesma.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Tremores produtivos

São as tristezas e as ânsias que nos tornam produtivos. Nas acções e nos pensamentos. Como perturbações, quais abanões que nos fazem acordar para a vida.

Sem sofrimento, adormecemos. Tornamo-nos passivos e resignados com o pouco que o mundo pode ter para nos oferecer. O sofrimento é um despertador que nos faz tirar o cu da cama para prepararmos um belíssimo pequeno-almoço.

Haja, pois então, sofrimento. Sem medos nem falsas comiserações. Venha a dor, para um dia colocarmos em perspectiva toda a alegria do momento e, assim, lhe conferirmos ainda mais valor. 

"It's an art to live with pain, mix the light into grey." - EV

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Dormências da alma

Estava deitado, fitando o tecto branco do quarto após ter derretido, à força do olhar, cinquenta páginas de um livro recém-lançado. Pousado o compêndio de folhas que só ganham sentido quando ordenadas numa única disposição, olhou para dentro. Fixou-se. E, por momentos, sentiu-se desconfortável.

A falta de sensibilidade assemelhou-se-lhe a uma doença. A alma adormeceu-se-lhe, como se tivesse tomado uma dose excessiva de soporíferos. Questionou-se. Ponderou as possibilidades que lhe pudessem causar alterações ao estado de espírito e muito pouco o assombrou.

Caiu em si, estarrecido com tal eventualidade. Será assim mesmo, indaga. Talvez não. Mas, por agora, nada é, nada o emudece de pânico, muito pouco o arrebata e, acima de tudo, apenas as hipóteses aparentemente idílicas e improváveis o deixam escapar de si mesmo e imaginar um outro eu.

Está, portanto, pronto para encerrar as dormências da alma e, enfim, sonhar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Segredos

Os segredos dão-nos cabo das costas. Acarretamo-los, curvados sobre nós próprios, subjugados consoante o peso de cada uma das inconfidências que guardamos ou vivemos. 

Quanto mais tempo se guardam, mais os queremos expelir, como se de ar a mais nos pulmões se tratassem. Deitá-los fora, ao vento, deixá-los escapar, num acto cujo beneficiado único seríamos nós próprios, livres de um fardo sem precedentes. 

Os segredos, tais como os raciocínios, ideias ou as palavras em geral, deveriam ser libertados em tempo útil. O que é guardado sempre tem prazo de validade e, por isso, é passível de sair da prateleira bafiento e impróprio de tão estragado.

Libertem-se os pensamentos e os segredos. Valorizem-se as palavras, ainda assim, que valem o que valem. 

A transparência torna salutar a consciência. Mas a reserva também oferece humanidade ao ser. O que fazer, então? O que se achar melhor, após a pesagem de prós e contras na balança da existência. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Quatro paredes

Os blocos de betão são os mesmos de sempre. Cobertos de uma mistela branca que secou e assim ficou. As paredes não aparentam ter a idade que já ostentam. Têm o ar de terem sido colocadas aqui algures antes de ontem. Dentro delas, a disposição mobiliária é semelhante à original. 

Livros dominam a paisagística da divisão. Empilhados, alguns já empoeirados. Uns vivos, à espera de uma primeira leitura, outros já meio moribundos por não serem abertos há dois ou três biénios. Por ali, também quatro guitarras. Ainda vivas, ansiosas por um estímulo para gemerem mais umas quantas notas. De vez em quando, é possível ouvi-las. Basta estar alerta.

Quando nada muda, habituamo-nos. Já nada nos desperta a atenção. Nada espicaça a inspiração. Houvesse uma forma de pôr todos os objectos a dialogar e as tardes possuiriam animadas e inéditas tertúlias. 

E, quando procuramos por ela, a inspiração teima em ficar enclausurada numa montanha longínqua, sem querer sair embora saiba que não será o melhor para si mesma. Precisamos de a atrair com recurso a artifícios ilegítimos. Procurá-la deliberadamente. Mesmo sabendo que a melhor inspiração é a inadvertida. 

Procuro-a. Naquela canção. Na frase brilhante que gostava de ter sido eu a escrever. Nos laços fraternos que construo com este ou aquele amigo. Na loiraça que me arrebata os sentidos. Na irritação própria de um dia cinzento. Na chamada para a realidade que os eventualismos me oferecem. Nas piadas que a vida teima em segredar-me ao ouvido. Em tudo. Não tem sido fácil encontrá-la. 

A não ser... Sim. Aqui está ela.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Metáforas físicas

A arte fascina-me. Por um vasto lote de razões. Porque invejo (alguns d)os artistas, por tamanhas criatividade e complexidade intelectual. Porque me revejo nas obras artísticas. Mas, acima de tudo, porque retiro delas um sentido para a vida.

Ontem, em conversa com a C, falava interessada e despreocupadamente sobre a minha paixão pela arte contemporânea, essa estranha técnica de transpôr pensamentos para objectos. Ao longo da mini-tertúlia, dava-lhe conta de alguns exemplos que encontrei numa exposição que visitei recentemente. Entre eles, um frigorífico amolgado, ao lado do qual um vídeo é mostrado ao visitante, onde se podem observar alguns indivíduos apedrejando o já de si inanimado electrodoméstico.

Aplicada à vida, a arte dá-nos lições. Aquele frigorífico não deixou de o ser, por muitas pedradas que tenha levado e por inúmeras pintalgadas mossas que ostente. Quem mais somos nós senão um frigorífico que, sem ter perdido a sua essência e função principal que nos conferem a pureza da nossa existência, não deixa de viver apesar de ser apedrejado uma e outra vez?

Não devemos esquecer-nos de que a teoria regenera sempre a prática. É o pensamento que nos melhora o quotidiano. O nosso e o dos outros. Com a sua subjectividade, a arte sensibiliza-nos. Porque nos mostra, a todos, o caminho que temos para trilhar. Porque cada um de nós sabe de onde vem.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Uma amizade com um quarto de século

A noite de ontem foi de celebração. Celebração da amizade, da vida e, mais que nunca, da presença contínua que alguns insistem em manter nas nossas vidas, mesmo quando parecemos não fazer um esforço relevante para tal. Será isso, afinal de contas, a verdadeira e incondicional amizade.

A partir da meia-noite, como todos convencionámos, mudamos de idade. No minuto em que já estamos noutro dia – no nosso dia -, estamos mais velhos. Assisti, portanto, em tempo real, à mudança de idade de um grande amigo. O G tem agora 27 anos de vida. Eu devo ter estado perto ao longo dos últimos 25.

Não me recordo do dia em que nos conhecemos. Acredito ser absolutamente impossível alguma vez ter algum laivo memorial dentro de mim que me faça lembrar esse momento. Éramos demasiado jovens. No meu ambiente de crescimento, ele sempre lá esteve. Fazia parte da vida, qual elemento natural.

Vivemos demasiado juntos – aqui, note-se, o demasiado não tem conotação negativa; muito pelo contrário. Eventos infantis próprios da idade, discussões bacocas, tolices da adolescência, gargalhadas sempre com propósito legítimo e, até, conversas que achava impróprias para alguém de tão tenra idade. Anos depois, tudo ainda está escrito nesse livro. Temos a felicidade de o abrir juntos, de vez em quando, regados por uma cerveja ou um café.

Um quarto de século depois, vejo-o. Observo-o melhor que nunca.

O G de há 15 ou 20 anos olharia para ti com grande orgulho, amigo. Sei-o, simplesmente. Tu também o saberás, certamente.

Venham mais 25.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Recordações de papel

Não tenho o hábito de os guardar. Por uma mera eventualidade, todavia, dei por mim a (re)descobrir um monte de talões antigos num receptáculo que não nasceu com esse indigno propósito.

Um amontoado de papelada obsoleta que mais não faz senão descrever episódios recentes de uma vida que já passou ou que ainda se vai vivendo.

Aquele quase-jantar com o B antes de um concerto incrivelmente intenso. Ou a refeição com o W perto de um lugar familiar e, ainda assim, desconhecido. Ou aquele lanche com uma amiga de longa data.

Os talões falam pelos eventos pelos quais pagámos para vivenciar. Mas falam também pelo antes e pelo depois de cada experiência. Contam uma história. Uma história que, infelizmente para todas as ricas narrativas que se poderiam construir, não fica escrita. Fica, sim, inscrita na memória de não mais que duas ou três pessoas. Incapaz de ficar gravada algures para a posteridade. Presa no cárcere de memórias até ao dia em que, libertando-se, se perdem para sempre.

Guardem-se os talões. Com legenda, para que um dia tenhamos alegres recordações de uma vida que foi a nossa mas que não nos parece, já, reconhecível.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Não fossem as perguntas

Não fossem as perguntas e não teríamos suficientes propósitos de felicidade. De perceber que há quem que se interesse por nós. O trabalho (já achaste, por ventura, algum)? A namorada (há, por ventura, alguma)? Os estudos (que tal o mestrado, ai, o doutoramento)? A vida, no geral?

Não fossem as frases com uma determinada entoação final e acharíamos que a nossa preocupação com aqueles de quem gostamos não era recíproca. Porque um sorriso e um carinho podem ser representativos de apenas alguma cordialidade. Pelo menos se forem trocados entre seres que se vêem quatro ou cinco vezes num ano.

Apesar dos laços de sangue e da informação genética semelhante que todos carregamos nuns tubinhos debaixo da pele, tudo isso poderia ser vão. Não fossem as perguntas. As preocupações. E, depois da resposta, as reacções de simpatia e de verdadeiro amor fraterno.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Janelas escuras

É noite. Uma madrugada gélida mas agradável. Observo os blocos de tijolo e cimento que se erguem do chão (quem foi que os plantou?).

É dentro das janelas escuras que se escondem os homens e as mulheres que dão cor à moldura da cidade, quando o sol se ergue e ilumina o firmamento. Lá dentro, imagino, dorme-se. Ama-se - ou, sendo cientificamente mais rigoroso, e destacando a frugalidade de um sentimento, pratica-se o coito. Ou, então, dá-se um novo alento à alma com este ou aquele filme ou livro, que um dia alguém escreveu para que amanhã todos enfrentem melhor o dia que se lhes depara.

Todos vivemos juntos. Concentrados. Empilhados em magotes. Sem darmos conta. Por detrás de janelas que não nos deixam ver de fora para dentro mas, injustiça das injustiças, deixam que os escondidos tudo observem.

Estamos incapazes de compreender. Impotentes de conhecer mais e melhor.

A saída de uma janela escura faz-se pela porta de entrada.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Epifanias de ano novo

É a conduzir que me surgem as melhores ideias. Puras epifanias, enquanto se navega num barco com rodas, por detrás de um leme que não precisa de cartas de marear. Na última noite daquilo que se convencionou chamar de ano, reflicto sobre o que fiz, o que passou, o que aconteceu, o que aprendi.

Reparo, com alguma surpresa, que acarreto uma bagagem valiosa debaixo do cabelo, escondida atrás da minha própria testa. Coisas minhas. Por muito que sejam partilhadas ou, por outro lado, pelo secretismo que encerram, são só minhas. Hão-de sê-lo sempre.

Tudo o que tenho verdadeiramente trago comigo. E estou grato. Perdesse eu agora mesmo o meu sopro final de vida e saberia que havia tido uma experiência luminosamente engraçada ao longo dos últimos 26 anos e picos.

Ainda que haja muito trabalho pela frente, reconheço qualidade nesta obra em progresso. Sei que tenho aprendido milhões de toneladas de saber com a maioria dos seres que se têm atravessado no meu caminho. Foi, ainda assim, com as desilusões que mais aprendi. Uma das maiores lições chegou nos últimos tempos: muito do que sou já tem uma pequenita tarimba necessária para ensinar qualquer coisa aos outros.

É este o desígnio derradeiro daquilo que por cá andamos a fazer. Não é mudar o mundo. É mudar o outro. Ter influência, possuir uma presença que enriqueça o próximo, importar.

Sou-o. Sei-o.