quinta-feira, 21 de março de 2013

Estrada com duas saídas

As melhores coisas são as que não esperamos. Depois há aquelas que, mesmo que estejamos a aguardá-las, possuem o crivo inabalável da surpresa. Estarrecem-nos. Questionam-nos, cara a cara, se valeremos assim tanto a pena ou, no fundo, seremos apenas mais uma desilusão. 

O caminho ascendente traz a si atrelado um risco inegável de uma queda trapalhona capaz de nos partir sete ou oito ossos orgulhosos. É, todavia, gradual - ou deve ser. Já nos diz o cliché: quanto mais alto se está, maior é a queda. Resta ir apalpando terreno. Especialmente porque há tempo pela frente. 

É sempre bom fazermos umas quantas retrospectivas. Escrever a nossa própria história. Aquela que nos esquematiza um caminho que, outrora, nos parecia atabalhoado e confuso. Ver o olhar descrente de uns e as vontade e estímulos de outros - dos que verdadeiramente importam. Observar as passadas, umas mais largas e confiantes que outras. 

Encarar as pessoas que nos apoiaram e que deram os conselhos ideais. Curiosamente, são os mesmos que, ao saber das boas novas, estão do nosso lado, com orgulho genuíno. E incondicional.

Agora falta saber o caminho que se segue, depois de uma acha que nos acende a fogueira da convicção. Não deixo a alegria toldar-me. Pelo contrário; o reconhecimento acarreta responsabilidades acrescidas. Pressões que os ombros não sabem se aguentam sem ceder um milímetro que seja.

Vou por ali. Obrigado aos que vêm comigo desde sempre.

"Writing, at its best, is a lonely life." - EH

sexta-feira, 8 de março de 2013

Um sonho.

De volante na mão. É a estrada que passa - qual tapete puxado por misteriosas forças - por debaixo das rodas, fazendo-as rolar. É noite. As luzes cuspidas pelos postes fazem brilhar de forma ritmada o pára-brisas. A macadâmia deve estar sedenta de automóveis, tal a ausência de máquinas vivas por ali, àquela hora. Deve ser madrugada.

No espelho, dois revêem-se e descobrem, lá atrás, ao longe, dois pontos luminosos que se aproximam.

Ao ultrapassar este carro, um rosto familiar deixa-se mostrar por entre o vidro do bólide que agora chegou. Num fugaz vislumbre, reconhecem-se.

Acto contínuo, há sinais luminosos que demonstram simplesmente vontades e desejos que não podem esperar.

Na berma de uma estrada deserta, embrulham-se num abraço e sorvem os espíritos num beijo apaixonado. O tempo pára, perde o sentido que normalmente tem. Podia ter passado um segundo ou três décadas - quem sabe?, é igual.

Não são trocadas palavras; o olhar basta. Dois caminhos que desafiam as leis da geometria. Primeiro paralelos, depois intersectando-se para, mais tarde, se sobreporem e, eventualmente, tornarem-se num só. 

Acordar. Negrume da escuridão. Calor no coração.

"The land at the end of our toes goes on and on and on and on." - SN

terça-feira, 5 de março de 2013

A morte passou-me à frente

Ainda antes de escrever as linhas que aí vêm, ponderei seriamente se devia ou não fazê-lo. Porque é um assunto íntimo daqueles que o sofreram directamente. Em respeito a eles, hoje, excepcionalmente, não esconderei nomes nem fontes. Eu vi, estava lá, por isso tomo a ousadia de me apropriar do direito de contar a história conforme estes olhos a viram. 

Cá vai, directo ao assunto: vi uma pessoa morrer.

Não haverá muita gente que o possa dizer - felizmente. Eu declaro, sem reservas: é um trauma. Mesmo quando nunca antes havia visto aquele desafortunado rosto. 

A doença de uma amiga fez-me ir até ao IPO. Ala dos doentes terminais. Na cama ao seu lado, uma paciente recebia a visita - soube eu posteriormente - de familiares próximos: o marido e a filha. O núcleo duro daquela família estava ali mesmo, à vista de quem quisesse olhar, à beira de ser estilhaçado em mil bocadinhos.

A certa altura, sem saber porquê, senti-me impelido a observar aquele quadro vivo. 

A mulher, deitada, fragilizada ao limite humanamente possível pelo cancro que se revelou fulminante, deglutia a custo aquele jantar. A filha, bonita, de luzidios olhos verdes, lutava para não se desfazer em lágrimas. O marido parecia estar noutro sítio, longe, escondido atrás de uma muralha intransponível, olhando sem reacção o estado a que chegara a pessoa que amava. 

Sem nada o prever, a mulher solta um gemido, suficientemente audível aqui deste lado. A filha, aflita, clama por uma enfermeira. 

Não sei quanto tempo passou, tal era a sensação surrealista do que eu, ingenuamente, julgava acontecer só naqueles filmes pesadões. Até cair em mim, senti-me desligado, alienado e, acima de tudo, impotente perante tudo aquilo. Estava a observar uma peça que não tinha sido encenada para mim e que, por mero acaso, vi.

O reboliço tornou-se tremendo. Acho que contei cinco enfermeiras e duas médicas. Uma delas, depois de fechar violentamente as cortinas da cama, disse, alto e bom som, a frase que ainda agora ressoa na minha mente.

"Ela está a morrer."

Ouvi gemidos. Ouvi gorgolejos que terão atirado cá para fora aquele jantar amavelmente preparado e que havia sido saboreado há pouco. 

Uma enfermeira ainda lhe atirou duas perguntas:
 - Como se chama? Diga-me o seu nome! - talvez apenas num mecanismo de reconhecimento da consciência daquela pobre mulher.
 - Ana Paula - respondeu.
 - Quantos anos tem?
 - Quarenta e oito. - Esta parte foi particularmente chocante para mim. A precisa idade da minha querida mãe.

Não aguentei. Saí. Quase a correr.

Cá fora, tive vontade de abraçar a rapariga dos olhos verdes que, abandonada a si mesma, no corredor, chorava agarrada a um lenço de papel amarfanhado e ensopado em sofrimentos. 

Não demorou muito até receber a notícia. 

Eram 19h40 do dia 4 de Março de 2013 quando a Ana Paula partiu, para morar apenas na memória daqueles que viveram a vida com ela. 

Eu, sem pedir, fui uma dessas pessoas. E ela nem o chegou a saber.

sábado, 2 de março de 2013

Alienígena

Uns poucos dias longe do mundo habitual dão-nos sempre a ideia de estar a ver a nossa vida do alto de uma outra montanha. Os motivos para essa fuga, voluntária ou involuntária, são inomináveis, de tão variados.

Os meus motivos não são bons, ao que vejo daqui. Pareço estar a viver uma verdadeira revolução. E - já se sabe - as revoluções dão sempre merda. De entre as coisas fantásticas que vão ocorrendo, parecem sempre surgir elementos que me alienam da vida. Há eventos que me desligam da ficha, que me fazem viajar para outra dimensão, que me fazem perder o oxigénio neste suporte básico de vida.

Os objectos parecem perguntar-me, matreiros, em tom de desafio, se seria eu lembrado e saudoso se desaparecesse desta terra. A vida faz-me perguntas destas. E eu...

E eu.

Não soube responder.

Sinto-me longe, desligado, destrambelhado, dessincronizado, apagado, perdido. Há amigos que não me põem a vista em cima há semanas. Há hábitos que já não aparentam definir-me. Há esta vida que já não é a mesma de outrora. 

Não sei para onde estou a ir. Mas não paro de caminhar.