quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Tremores produtivos

São as tristezas e as ânsias que nos tornam produtivos. Nas acções e nos pensamentos. Como perturbações, quais abanões que nos fazem acordar para a vida.

Sem sofrimento, adormecemos. Tornamo-nos passivos e resignados com o pouco que o mundo pode ter para nos oferecer. O sofrimento é um despertador que nos faz tirar o cu da cama para prepararmos um belíssimo pequeno-almoço.

Haja, pois então, sofrimento. Sem medos nem falsas comiserações. Venha a dor, para um dia colocarmos em perspectiva toda a alegria do momento e, assim, lhe conferirmos ainda mais valor. 

"It's an art to live with pain, mix the light into grey." - EV

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Dormências da alma

Estava deitado, fitando o tecto branco do quarto após ter derretido, à força do olhar, cinquenta páginas de um livro recém-lançado. Pousado o compêndio de folhas que só ganham sentido quando ordenadas numa única disposição, olhou para dentro. Fixou-se. E, por momentos, sentiu-se desconfortável.

A falta de sensibilidade assemelhou-se-lhe a uma doença. A alma adormeceu-se-lhe, como se tivesse tomado uma dose excessiva de soporíferos. Questionou-se. Ponderou as possibilidades que lhe pudessem causar alterações ao estado de espírito e muito pouco o assombrou.

Caiu em si, estarrecido com tal eventualidade. Será assim mesmo, indaga. Talvez não. Mas, por agora, nada é, nada o emudece de pânico, muito pouco o arrebata e, acima de tudo, apenas as hipóteses aparentemente idílicas e improváveis o deixam escapar de si mesmo e imaginar um outro eu.

Está, portanto, pronto para encerrar as dormências da alma e, enfim, sonhar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Segredos

Os segredos dão-nos cabo das costas. Acarretamo-los, curvados sobre nós próprios, subjugados consoante o peso de cada uma das inconfidências que guardamos ou vivemos. 

Quanto mais tempo se guardam, mais os queremos expelir, como se de ar a mais nos pulmões se tratassem. Deitá-los fora, ao vento, deixá-los escapar, num acto cujo beneficiado único seríamos nós próprios, livres de um fardo sem precedentes. 

Os segredos, tais como os raciocínios, ideias ou as palavras em geral, deveriam ser libertados em tempo útil. O que é guardado sempre tem prazo de validade e, por isso, é passível de sair da prateleira bafiento e impróprio de tão estragado.

Libertem-se os pensamentos e os segredos. Valorizem-se as palavras, ainda assim, que valem o que valem. 

A transparência torna salutar a consciência. Mas a reserva também oferece humanidade ao ser. O que fazer, então? O que se achar melhor, após a pesagem de prós e contras na balança da existência. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Quatro paredes

Os blocos de betão são os mesmos de sempre. Cobertos de uma mistela branca que secou e assim ficou. As paredes não aparentam ter a idade que já ostentam. Têm o ar de terem sido colocadas aqui algures antes de ontem. Dentro delas, a disposição mobiliária é semelhante à original. 

Livros dominam a paisagística da divisão. Empilhados, alguns já empoeirados. Uns vivos, à espera de uma primeira leitura, outros já meio moribundos por não serem abertos há dois ou três biénios. Por ali, também quatro guitarras. Ainda vivas, ansiosas por um estímulo para gemerem mais umas quantas notas. De vez em quando, é possível ouvi-las. Basta estar alerta.

Quando nada muda, habituamo-nos. Já nada nos desperta a atenção. Nada espicaça a inspiração. Houvesse uma forma de pôr todos os objectos a dialogar e as tardes possuiriam animadas e inéditas tertúlias. 

E, quando procuramos por ela, a inspiração teima em ficar enclausurada numa montanha longínqua, sem querer sair embora saiba que não será o melhor para si mesma. Precisamos de a atrair com recurso a artifícios ilegítimos. Procurá-la deliberadamente. Mesmo sabendo que a melhor inspiração é a inadvertida. 

Procuro-a. Naquela canção. Na frase brilhante que gostava de ter sido eu a escrever. Nos laços fraternos que construo com este ou aquele amigo. Na loiraça que me arrebata os sentidos. Na irritação própria de um dia cinzento. Na chamada para a realidade que os eventualismos me oferecem. Nas piadas que a vida teima em segredar-me ao ouvido. Em tudo. Não tem sido fácil encontrá-la. 

A não ser... Sim. Aqui está ela.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Metáforas físicas

A arte fascina-me. Por um vasto lote de razões. Porque invejo (alguns d)os artistas, por tamanhas criatividade e complexidade intelectual. Porque me revejo nas obras artísticas. Mas, acima de tudo, porque retiro delas um sentido para a vida.

Ontem, em conversa com a C, falava interessada e despreocupadamente sobre a minha paixão pela arte contemporânea, essa estranha técnica de transpôr pensamentos para objectos. Ao longo da mini-tertúlia, dava-lhe conta de alguns exemplos que encontrei numa exposição que visitei recentemente. Entre eles, um frigorífico amolgado, ao lado do qual um vídeo é mostrado ao visitante, onde se podem observar alguns indivíduos apedrejando o já de si inanimado electrodoméstico.

Aplicada à vida, a arte dá-nos lições. Aquele frigorífico não deixou de o ser, por muitas pedradas que tenha levado e por inúmeras pintalgadas mossas que ostente. Quem mais somos nós senão um frigorífico que, sem ter perdido a sua essência e função principal que nos conferem a pureza da nossa existência, não deixa de viver apesar de ser apedrejado uma e outra vez?

Não devemos esquecer-nos de que a teoria regenera sempre a prática. É o pensamento que nos melhora o quotidiano. O nosso e o dos outros. Com a sua subjectividade, a arte sensibiliza-nos. Porque nos mostra, a todos, o caminho que temos para trilhar. Porque cada um de nós sabe de onde vem.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Uma amizade com um quarto de século

A noite de ontem foi de celebração. Celebração da amizade, da vida e, mais que nunca, da presença contínua que alguns insistem em manter nas nossas vidas, mesmo quando parecemos não fazer um esforço relevante para tal. Será isso, afinal de contas, a verdadeira e incondicional amizade.

A partir da meia-noite, como todos convencionámos, mudamos de idade. No minuto em que já estamos noutro dia – no nosso dia -, estamos mais velhos. Assisti, portanto, em tempo real, à mudança de idade de um grande amigo. O G tem agora 27 anos de vida. Eu devo ter estado perto ao longo dos últimos 25.

Não me recordo do dia em que nos conhecemos. Acredito ser absolutamente impossível alguma vez ter algum laivo memorial dentro de mim que me faça lembrar esse momento. Éramos demasiado jovens. No meu ambiente de crescimento, ele sempre lá esteve. Fazia parte da vida, qual elemento natural.

Vivemos demasiado juntos – aqui, note-se, o demasiado não tem conotação negativa; muito pelo contrário. Eventos infantis próprios da idade, discussões bacocas, tolices da adolescência, gargalhadas sempre com propósito legítimo e, até, conversas que achava impróprias para alguém de tão tenra idade. Anos depois, tudo ainda está escrito nesse livro. Temos a felicidade de o abrir juntos, de vez em quando, regados por uma cerveja ou um café.

Um quarto de século depois, vejo-o. Observo-o melhor que nunca.

O G de há 15 ou 20 anos olharia para ti com grande orgulho, amigo. Sei-o, simplesmente. Tu também o saberás, certamente.

Venham mais 25.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Recordações de papel

Não tenho o hábito de os guardar. Por uma mera eventualidade, todavia, dei por mim a (re)descobrir um monte de talões antigos num receptáculo que não nasceu com esse indigno propósito.

Um amontoado de papelada obsoleta que mais não faz senão descrever episódios recentes de uma vida que já passou ou que ainda se vai vivendo.

Aquele quase-jantar com o B antes de um concerto incrivelmente intenso. Ou a refeição com o W perto de um lugar familiar e, ainda assim, desconhecido. Ou aquele lanche com uma amiga de longa data.

Os talões falam pelos eventos pelos quais pagámos para vivenciar. Mas falam também pelo antes e pelo depois de cada experiência. Contam uma história. Uma história que, infelizmente para todas as ricas narrativas que se poderiam construir, não fica escrita. Fica, sim, inscrita na memória de não mais que duas ou três pessoas. Incapaz de ficar gravada algures para a posteridade. Presa no cárcere de memórias até ao dia em que, libertando-se, se perdem para sempre.

Guardem-se os talões. Com legenda, para que um dia tenhamos alegres recordações de uma vida que foi a nossa mas que não nos parece, já, reconhecível.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Não fossem as perguntas

Não fossem as perguntas e não teríamos suficientes propósitos de felicidade. De perceber que há quem que se interesse por nós. O trabalho (já achaste, por ventura, algum)? A namorada (há, por ventura, alguma)? Os estudos (que tal o mestrado, ai, o doutoramento)? A vida, no geral?

Não fossem as frases com uma determinada entoação final e acharíamos que a nossa preocupação com aqueles de quem gostamos não era recíproca. Porque um sorriso e um carinho podem ser representativos de apenas alguma cordialidade. Pelo menos se forem trocados entre seres que se vêem quatro ou cinco vezes num ano.

Apesar dos laços de sangue e da informação genética semelhante que todos carregamos nuns tubinhos debaixo da pele, tudo isso poderia ser vão. Não fossem as perguntas. As preocupações. E, depois da resposta, as reacções de simpatia e de verdadeiro amor fraterno.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Janelas escuras

É noite. Uma madrugada gélida mas agradável. Observo os blocos de tijolo e cimento que se erguem do chão (quem foi que os plantou?).

É dentro das janelas escuras que se escondem os homens e as mulheres que dão cor à moldura da cidade, quando o sol se ergue e ilumina o firmamento. Lá dentro, imagino, dorme-se. Ama-se - ou, sendo cientificamente mais rigoroso, e destacando a frugalidade de um sentimento, pratica-se o coito. Ou, então, dá-se um novo alento à alma com este ou aquele filme ou livro, que um dia alguém escreveu para que amanhã todos enfrentem melhor o dia que se lhes depara.

Todos vivemos juntos. Concentrados. Empilhados em magotes. Sem darmos conta. Por detrás de janelas que não nos deixam ver de fora para dentro mas, injustiça das injustiças, deixam que os escondidos tudo observem.

Estamos incapazes de compreender. Impotentes de conhecer mais e melhor.

A saída de uma janela escura faz-se pela porta de entrada.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Epifanias de ano novo

É a conduzir que me surgem as melhores ideias. Puras epifanias, enquanto se navega num barco com rodas, por detrás de um leme que não precisa de cartas de marear. Na última noite daquilo que se convencionou chamar de ano, reflicto sobre o que fiz, o que passou, o que aconteceu, o que aprendi.

Reparo, com alguma surpresa, que acarreto uma bagagem valiosa debaixo do cabelo, escondida atrás da minha própria testa. Coisas minhas. Por muito que sejam partilhadas ou, por outro lado, pelo secretismo que encerram, são só minhas. Hão-de sê-lo sempre.

Tudo o que tenho verdadeiramente trago comigo. E estou grato. Perdesse eu agora mesmo o meu sopro final de vida e saberia que havia tido uma experiência luminosamente engraçada ao longo dos últimos 26 anos e picos.

Ainda que haja muito trabalho pela frente, reconheço qualidade nesta obra em progresso. Sei que tenho aprendido milhões de toneladas de saber com a maioria dos seres que se têm atravessado no meu caminho. Foi, ainda assim, com as desilusões que mais aprendi. Uma das maiores lições chegou nos últimos tempos: muito do que sou já tem uma pequenita tarimba necessária para ensinar qualquer coisa aos outros.

É este o desígnio derradeiro daquilo que por cá andamos a fazer. Não é mudar o mundo. É mudar o outro. Ter influência, possuir uma presença que enriqueça o próximo, importar.

Sou-o. Sei-o.