terça-feira, 5 de março de 2013

A morte passou-me à frente

Ainda antes de escrever as linhas que aí vêm, ponderei seriamente se devia ou não fazê-lo. Porque é um assunto íntimo daqueles que o sofreram directamente. Em respeito a eles, hoje, excepcionalmente, não esconderei nomes nem fontes. Eu vi, estava lá, por isso tomo a ousadia de me apropriar do direito de contar a história conforme estes olhos a viram. 

Cá vai, directo ao assunto: vi uma pessoa morrer.

Não haverá muita gente que o possa dizer - felizmente. Eu declaro, sem reservas: é um trauma. Mesmo quando nunca antes havia visto aquele desafortunado rosto. 

A doença de uma amiga fez-me ir até ao IPO. Ala dos doentes terminais. Na cama ao seu lado, uma paciente recebia a visita - soube eu posteriormente - de familiares próximos: o marido e a filha. O núcleo duro daquela família estava ali mesmo, à vista de quem quisesse olhar, à beira de ser estilhaçado em mil bocadinhos.

A certa altura, sem saber porquê, senti-me impelido a observar aquele quadro vivo. 

A mulher, deitada, fragilizada ao limite humanamente possível pelo cancro que se revelou fulminante, deglutia a custo aquele jantar. A filha, bonita, de luzidios olhos verdes, lutava para não se desfazer em lágrimas. O marido parecia estar noutro sítio, longe, escondido atrás de uma muralha intransponível, olhando sem reacção o estado a que chegara a pessoa que amava. 

Sem nada o prever, a mulher solta um gemido, suficientemente audível aqui deste lado. A filha, aflita, clama por uma enfermeira. 

Não sei quanto tempo passou, tal era a sensação surrealista do que eu, ingenuamente, julgava acontecer só naqueles filmes pesadões. Até cair em mim, senti-me desligado, alienado e, acima de tudo, impotente perante tudo aquilo. Estava a observar uma peça que não tinha sido encenada para mim e que, por mero acaso, vi.

O reboliço tornou-se tremendo. Acho que contei cinco enfermeiras e duas médicas. Uma delas, depois de fechar violentamente as cortinas da cama, disse, alto e bom som, a frase que ainda agora ressoa na minha mente.

"Ela está a morrer."

Ouvi gemidos. Ouvi gorgolejos que terão atirado cá para fora aquele jantar amavelmente preparado e que havia sido saboreado há pouco. 

Uma enfermeira ainda lhe atirou duas perguntas:
 - Como se chama? Diga-me o seu nome! - talvez apenas num mecanismo de reconhecimento da consciência daquela pobre mulher.
 - Ana Paula - respondeu.
 - Quantos anos tem?
 - Quarenta e oito. - Esta parte foi particularmente chocante para mim. A precisa idade da minha querida mãe.

Não aguentei. Saí. Quase a correr.

Cá fora, tive vontade de abraçar a rapariga dos olhos verdes que, abandonada a si mesma, no corredor, chorava agarrada a um lenço de papel amarfanhado e ensopado em sofrimentos. 

Não demorou muito até receber a notícia. 

Eram 19h40 do dia 4 de Março de 2013 quando a Ana Paula partiu, para morar apenas na memória daqueles que viveram a vida com ela. 

Eu, sem pedir, fui uma dessas pessoas. E ela nem o chegou a saber.

Sem comentários:

Enviar um comentário